Habeas Corpus: Um instrumento de Luta Pela Legalização Da Cannabis
ENTREVISTA
São Paulo, 27.08.2024
A atuação de advogados tem sido fundamental na luta pela descriminalização e legalização da cannabis no Brasil. Através do Habeas Corpus, eles têm desafiado a Lei de Drogas, expondo as injustiças e o impacto negativo da proibição, especialmente sobre jovens negros e moradores de periferias.
Dados recentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) revelam um crescimento expressivo nos últimos anos. Enquanto em 2018 foram registrados apenas 2 pedidos, em 2023 esse número saltou para 70. Até o dia 27 de maio de 2024, já haviam sido contabilizados 82 pedidos, representando um aumento de mais de 4.100% em relação ao primeiro ano da série histórica.
A crescente demanda por tratamentos com cannabis, reconhecida pela comunidade científica como eficaz para diversas condições de saúde, como dores crônicas, epilepsia e esclerose múltipla, tem pressionado o Judiciário a se posicionar sobre o tema. A falta de uma legislação específica sobre a cannabis medicinal no Brasil tem levado muitos pacientes a recorrer à Justiça para garantir o acesso à planta e seus derivados.
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A fim de contribuir com o debate acerca desse tema, conversamos com as advogadas Gabriela Arima & Cecília Galício, especialistas em política de drogras e direitos humanos, para nos esclarecer sobre como o Habeas Corpus pode ser um instrumento privilegiado na luta pela descriminalização e legalização da cannabis no Brasil. Confira nossa entrevista exclusiva!

"Marcha Da Maconha" fotos © Paulo Pinto | Agência Brasil/Fotos Publicas 

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IH Repórter: Quais os principais desafios enfrentados pelos advogados ao utilizar o
habeas corpus como ferramenta para garantir o acesso à cannabis medicinal
no Brasil, considerando o atual cenário jurídico e social?

Arima & Galício: Um dos maiores desafios enfrentados pela advocacia nesses casos é a falta de conhecimento e os preconceitos que norteiam os membros do Judiciário e do Ministério Público. Quando um caso é levado ao Judiciário precisamos ter em mente que este será julgado por pessoas, que, apesar de ocuparem cargos públicos e terem o dever de agir de forma racional e imparcial, a realidade é que muitas vezes essas decisões são impactadas por preconceitos e crenças pessoais. 
Esse é, inclusive, um grande desafio enfrentado por advogadas e advogados em praticamente todas as ações judiciais. Como convencer alguém que não deseja ser convencido? Ou que ativamente divulga e se baseia em informações falsas? Que se recusa a seguir o entendimento dos Tribunais Superiores? Realmente é um trabalho muito amargo. 
Por isso a importância de o Habeas Corpus ser sempre instruído com documentação robusta, comprovando a necessidade de proteção e o direito do paciente, bem como ter uma profissional ao seu lado que esteja preparada para enfrentar todos os obstáculos que possam surgir no caminho.
" Um dos maiores desafios enfrentados pela advocacia nesses casos é a falta de conhecimento e os preconceitos que norteiam os membros do Judiciário e do Ministério Público."

IH Repórter: Como a evolução jurisprudencial tem impactado a utilização do Habeas
Corpus para o cultivo de cannabis? Quais os principais precedentes que
marcaram essa evolução?

Arima & Galício: Felizmente nos últimos anos pudemos avançar radicalmente no entendimento jurisprudencial acerca da utilização do Habeas Corpus para garantir o direito dos pacientes a cultivarem e utilizarem a planta para fins terapêuticos. Uma semente plantada em 2016, com a elaboração da tese pelos membros da Rede Reforma, e que culminou no brilhante julgamento do Recurso Especial 1.972.092 (Rel. Ministro Rogério Schietti), do qual fomos as advogadas responsáveis pelo caso, e do Recurso em Habeas Corpus 147.169 (Rel. Ministro Sebastião Reis), do qual também incidimos diretamente, pois se tratou de um julgamento em conjunto. 
Aquela foi a primeira vez na história do nosso país, que uma Corte Superior reconheceu o direito ao cultivo de maconha para fins medicinais, um dia muito marcante em nossa história e luta. Após esses julgados, a 3a seção do Superior Tribunal de Justiça, por maioria de votos e com o objetivo de uniformizar o entendimento acerca dos HCs reafirmou a necessidade de proteção dos pacientes que encontraram no tratamento com a planta o necessário alívio dos seus males.
“Felizmente nos últimos anos pudemos avançar [...]Uma semente plantada em 2016, com a elaboração da tese pelos membros da Rede Reforma [...] Aquela foi a primeira vez 
na história do nosso país, que uma Corte Superior reconheceu o direito ao cultivo de maconha para fins medicinais [...].”

IH Repórter: Quais os argumentos jurídicos mais utilizados pelos advogados para
justificar a concessão do habeas corpus em casos de cultivo de cannabis
medicinal? Como esses argumentos se conectam aos direitos fundamentais
garantidos pela Constituição Federal?

Arima & Galício: O ideal é que não existam “modelos”, mas que cada profissional esteja apto e capaz de fazer o exercício jurídico necessário e competente para atender as demandas dos pacientes, mas existem questões imprescindíveis, como a proteção e garantia a
direitos fundamentais, que devem toda a petição. Aqui estamos diante da necessidade de garantir direitos básicos como a saúde, a vida, a dignidade humana, autonomia e, principalmente, a liberdade. 
Aliás, o direito e necessidade de proteção à liberdade é o que torna o Habeas Corpus o instrumento jurídico cabível, afinal, enquanto o cultivo de maconha for considerado um crime no Brasil (ou que seja um ilícito administrativo como decidido pela Suprema Corte Federal), pessoas correm o risco de serem presas, responderem criminalmente por tráfico de drogas, ou, mesmo que não o sejam, correm o risco de terem suas plantas e equipamentos apreendidos e seu tratamento interrompido. Infelizmente, essa é a a realidade das abordagens policiais: pacientes e usuários são injustamente enquadrados e tratados como traficantes quando não o são. Ou seja, enquanto persistir a proibição, é necessário que o Judiciário proteja e garanta o direito máximo à saúde e liberdade dos pacientes.
Existem ainda outros argumentos jurídicos que podem ser utilizados para invocar o
direito à saúde e à liberdade, como por exemplo, o direito comparado, que permite
aos advogados embasar seus argumentos com base em experiências legais de outros
países, considerando ainda que o direito à saúde e à liberdade não é uma questão
isolada, mas sim um princípio amplamente reconhecido e protegido em diversas
jurisdições. A análise de como outros países têm equilibrado o uso terapêutico da
cannabis com suas respectivas normas legais pode fornecer contribuições importantes
para o Brasil.
IH Repórter: Qual o papel da perícia médica nos processos de Habeas Corpus para o cultivo de cannabis medicinal? Como os laudos periciais influenciam a decisão judicial?

Arima & Galício: Não estamos aqui falando de perícia médica. Não existe perícia no Habeas Corpus, vez que não existe instrução probatória. Esse instrumento jurídico exige que toda documentação necessária para convencimento do juiz seja anexada aos autos junto com a petição inicial. 
E daí nasce a necessidade de se ter uma documentação médica robusta, que mostre ao julgador que aquele paciente possui determinada patologia, que foi devidamente diagnosticado, que está sob tratamento e com acompanhamento médico com a devida especialidade, que alcançou melhoras com o tratamento com a Cannabis. 
Não existe Habeas Corpus sem documentação médica. É a partir dessa necessidade de saúde que nasce a razão de se pleitear um salvo-conduto. É o que sempre falamos: o trabalho maior de um HC é do próprio paciente, que é quem precisará solicitar e reunir esse conjunto de prescrições, laudos, prontuários, etc, para demonstrar que sua doença existe, que o tratamento está em andamento e é eficaz.
"Não existe Habeas Corpus sem documentação médica. É a partir dessa necessidade de saúde que nasce a razão de se pleitear um salvo-conduto."
IH Repórter: Como a questão da segurança jurídica dos pacientes que cultivam cannabis, mesmo com a concessão do Habeas Corpus, é abordada pelos advogados? Quais as medidas que podem ser tomadas para garantir essa segurança?

Arima & Galício: Sabemos que o habeas corpus oferece uma proteção importante ao paciente, e que essa segurança jurídica pode ser limitada por diversos fatores, como interpretações divergentes entre tribunais, possíveis mudanças na jurisprudência, ou novas ações judiciais que desafiem o direito ao autocultivo. Assim, a concessão de um habeas corpus não garante, por si só, uma proteção absoluta. 
Para os advogados, é importante que orientem continuamente seus clientes sobre os limites e as condições do habeas corpus concedido: isso inclui informar sobre a necessidade de manter-se dentro dos parâmetros estabelecidos pela decisão judicial, como a quantidade de plantas permitidas ou a finalidade exclusivamente terapêutica do cultivo. 
Para garantir uma segurança jurídica mais robusta e duradoura, é crucial a promulgação de leis que regulamentem de forma clara e abrangente o cultivo de cannabis para fins terapêuticos, ou seja, embora o habeas corpus seja uma ferramenta poderosa para garantir o direito ao autocultivo de cannabis para fins terapêuticos, a segurança jurídica dos pacientes não deve ser vista como garantida apenas por essa medida, medidas adicionais, como a documentação cuidadosa e o envolvimento em ações coletivas, também são essenciais para fortalecer a proteção dos direitos desses pacientes e garantir que eles possam exercer seu direito ao autocultivo sem medo.
"...o habeas corpus oferece uma proteção importante ao paciente, e que essa segurança jurídica pode ser limitada por diversos fatores, como interpretações divergentes entre tribunais, possíveis mudanças na jurisprudência, ou novas ações judiciais que desafiem o direito ao autocultivo."
IH Repórter: Qual o papel do ativismo na luta pela legalização e descriminalização da cannabis? Como os advogados podem contribuir para a construção de um marco legal mais justo e eficaz para os usuários e pacientes da planta?

Arima & Galício: Uma das principais contribuições dos advogados luta pela descriminalização e pela legalização da cannabis é a constante provocação do Poder Judiciário para a promoção de mudanças no cenário atual, como é o caso dos habeas corpus, cuja atuação dos advogados foi fundamental para expor a realidade da Lei de Drogas e o impacto nefasto da perseguição a uma planta, que é fundamental para a manutenção da vida e
da saúde de incontáveis brasileiros. 
Ao expor violências de Estado e desafiar leis existentes, propor novas legislações e defender indivíduos afetados por leis penais
relacionadas ao uso de cannabis, os advogados tem tido papel fundamental no
esclarecimento das funções de cada ente (Executivo, Legislativo e Judiciário) na
construção de políticas cidadãs. 
Destacam-se entre as atuações dos advogados: a articulação com movimentos sociais, questionando a aplicação seletiva e desproporcional da Lei de Drogas, que muitas vezes afetam mais gravemente as populações vulneráveis, como jovens negros e moradores de comunidades periféricas; o apoio à pesquisa científica, fomentando debater judicias acerca das evidências científicas sobre os benefícios medicinais da cannabis e a disseminação de
informações baseadas em evidências; a participação em debater políticos, pensando e
propondo novos modelos regulatórios, incluindo medidas de controle, distribuição
segura, tributação, entre outros; e por fim, através da defesa de casos que envolvem o
uso de cannabis, os advogados contribuem para formar uma jurisprudência que favoreça a descriminalização e a regulamentação da planta, criando precedentes legais
que influenciem futuras decisões e políticas públicas. 
O ativismo de advogados na luta pela legalização e descriminalização da cannabis, portanto, envolve uma atuação ampla e multifacetada que abrange desde a provocação judicial até a formulação de políticas públicas e a educação da sociedade. Ao conectar essas diferentes frentes, os advogados desempenham um papel crucial na construção de um marco legal que seja justo, eficaz e alinhado com os direitos humanos.
"...os advogados contribuem para formar uma jurisprudência que favoreça a descriminalização e a regulamentação da planta, criando precedentes legais
que influenciem futuras decisões e políticas públicas.
"

IH Repórter: Quais as perspectivas para o futuro da utilização do Habeas Corpus na luta
pela legalização da cannabis medicinal no Brasil? Quais os desafios e as oportunidades que se apresentam?

Arima & Galício: Embora o habeas corpus tenha sido uma ferramenta crucial para garantir o acesso de pacientes à cannabis medicinal em um cenário de regulamentação incipiente, acreditamos que sua relevância deverá diminuir à medida que uma legislação mais abrangente e específica seja aprovada. 
Entretanto, até que essa legislação seja totalmente implementada e consolidada, o habeas corpus continuará a ser um recurso essencial para aqueles que buscam garantir seu direito à saúde, especialmente em casos urgentes ou em lacunas regulatórias. Um dos principais desafios na transição do uso de habeas corpus para um sistema regulado é garantir que a nova legislação seja eficaz, acessível e justa. 
Isso inclui evitar a burocratização excessiva que possa dificultar o acesso dos pacientes à cannabis medicinal e assegurar que as decisões judiciais anteriores sejam respeitadas e integradas ao novo marco legal. A transição para um modelo regulado deve ser acompanhada de políticas que busquem reparar essas injustiças, como a inclusão de comunidades historicamente marginalizadas nos benefícios econômicos e sociais da legalização. 
A vigilância contínua e a participação social é também um desafio essencial para garantir que a transição para um modelo regulado não reproduza as mesmas desigualdades e injustiças do passado. Essa vigilância deve ser exercida não apenas pelo Estado, mas também pela sociedade civil, através de fóruns de debate, consultas públicas, e mecanismos de controle social que assegurem a transparência e a equidade na implementação das novas políticas. Enquanto esse marco não é plenamente estabelecido, o habeas corpus continuará sendo uma ferramenta vital para a proteção dos direitos dos pacientes.

IH Repórter: Desde quando o Habeas Corpus passou a ser usado no Brasil (e no mundo?) e quando o pedido de Habeas Corpus deve ser considerado pelo paciente/usuário?

Arima & Galício:  O Habeas Corpus, que significa "tenha o teu corpo" em latim, surgiu na Inglaterra no século XVII como uma resposta às práticas arbitrárias de detenção pelo Estado. Formalizado pela Habeas Corpus Act de 1679, tornou-se uma garantia fundamental contra prisões ilegais e abusivas. 
Com o tempo, esse instrumento se espalhou para diversas jurisdições ao redor do mundo, sendo incorporado em muitas constituições e sistemas jurídicos, inclusive no Brasil, e foi incorporado pela primeira vez na Constituição de 1824 e desde então se consolidou como um dos mais importantes mecanismos de proteção dos direitos individuais. É especialmente relevante em casos de privação de liberdade, onde sua função é garantir que ninguém seja detido ou mantido preso sem justificativa legal adequada. 
O Habeas Corpus para o autocultivo passou a ser utilizado de forma inovadora na luta pela legalização da cannabis medicinal no Brasil, sobretudo a partir de 2018, quando pacientes e usuários terapêuticos passaram a recorrer a essa medida para garantir o direito ao autocultivo da planta, evitando a criminalização por porte e cultivo. Esse uso criativo do Habeas Corpus reflete a flexibilidade e a importância desse instrumento na defesa dos direitos fundamentais em contextos novos e emergentes. 
Pacientes e usuários de cannabis devem considerar o habeas corpus em situações onde há risco iminente de detenção ou criminalização por atividades relacionadas ao cultivo ou uso da planta, especialmente nos casos em que há prescrição e acompanhamento médico, bem como, condições favoráveis ao paciente para fazê-lo, ou sejam disponibilidade de tempo, espaço, capacidade técnica, entre outros recursos necessários e imprescindíveis para o sucesso da medida. 
O uso do Habeas Corpus no contexto da cannabis medicinal demonstra a adaptabilidade do direito em responder às necessidades contemporâneas, vez que não só protege indivíduos em situações específicas, mas também contribui para a formação de uma jurisprudência mais progressista, que pode influenciar futuras reformas legislativas. À medida que o debate sobre a legalização avança, o habeas corpus continuará a ser uma ferramenta essencial até que se estabeleça um marco regulatório abrangente e eficaz.
"O uso do Habeas Corpus no contexto da cannabis medicinal demonstra a adaptabilidade do direito em responder às necessidades contemporâneas, vez que não só protege indivíduos em situações específicas, mas também contribui para a formação de uma jurisprudência mais progressista, que pode influenciar futuras reformas legislativas."
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Escritório Antiproibicionista, especializado em Advocacia Criminal, com foco em Política de Drogas e Direitos Humanos.

Advogada e ativista em direitos humanos e política de drogas, atualmente, é mestranda em Direito pela Syracuse University (NY/EUA). Sócia-fundadora do escritório Arima & Galício Advogadas Associadas. Ex-diretora e integrante da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas - Rede Reforma, conselheira do Conselho Estadual de Política sobre Drogas de São Paulo - CONED/SP, consultora na Comissão do Direito do Setor da Cannabis Medicinal da OAB/RJ e compõe o Grupo de Trabalho da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo formado para criar e aperfeiçoar a regulamentação da Lei de fornecimento gratuito de medicamentos a base de Cannabis pelo SUS.

Advogada, mestre em Direito Internacional Público pela Universidade de Lisboa. Professora de pós-graduação na Unyleya Educacional. Sócia-fundadora do escritório Arima & Galício Advogadas Associadas. Conselheira no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas. Coordenadora adjunta no Núcleo de Álcool, Outras Drogas e Saúde Mental da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP. Ex-diretora e integrante da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas - Rede Reforma.

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Produção: INFO HEMP Studio
TAGS
InfoHemp, Cannabis, Cultura, Ativismo, Política de Drogas, Habeas Corpus, Arima & Galício
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