Entrevista 

São Paulo, 11.07.2024
Produção INFO HEMP Studio

Em uma decisão histórica e amplamente debatida, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou a descriminalização do porte de pequenas quantidades de maconha para uso pessoal no Brasil. Esta decisão, fruto de anos de discussões jurídicas e sociais, promete reconfigurar o cenário das políticas de drogas no país, trazendo implicações profundas para o sistema de justiça, a saúde pública e a economia.

Foto: Carla Bispo/Acervo Camara Clara © INFO HEMP Brasil

Descriminalização do Usuário de Maconha: Mudança de Paradigma ou Não?
A decisão do STF se baseia no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635659, que questionava a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). Em um julgamento apertado, os ministros decidiram que a criminalização do usuário de drogas é ineficaz e punitiva. 
Segundo o ministro Luís Roberto Barroso, "a criminalização do usuário de drogas se mostrou ineficaz e punitiva, aumentando a superlotação dos presídios e contribuindo para a marginalização de jovens pobres e negros".
Audiências públicas realizadas em 2015 no STF foram fundamentais para a formação do entendimento dos ministros. Especialistas em saúde, direitos humanos e segurança pública apresentaram dados que mostravam os impactos negativos da criminalização.

Foto: Carla Bispo/Acervo Camara Clara © INFO HEMP Brasil
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aproximadamente 29% dos presos no Brasil são detidos por crimes relacionados às drogas, contribuindo significativamente para a superlotação carcerária. Estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) indicam que a maioria desses detidos são jovens, negros e de baixa renda, destacando a desigualdade racial exacerbada pela política atual.
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Além disso, exemplos internacionais influenciaram a decisão. Em Portugal, a descriminalização das drogas, implementada em 2001, resultou em uma significativa redução no número de casos de overdose e um aumento na busca por tratamento, sem um aumento correspondente no uso de drogas. 
No Uruguai, a regulamentação do mercado de maconha também mostrou resultados positivos na redução da criminalidade associada ao tráfico de drogas. No entanto, no caso do Brasil, a pergunta que se coloca é: a decisão do STF abre caminho para uma política de drogas mais humana e racional no Brasil? 
Para responder à esta e outras perguntas, em face desse novo capítulo da história da Guerra às Drogas, conversamos com duas especialistas e pioneiras no tema, as advogadas Gabriella Arima & Cecília Galício quem atuam no âmbito da advocacia criminal, política de drogas e direitos humanos.

Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, 2011.  Foto: Carla Bispo/Acervo Camara Clara © INFO HEMP Brasil

Descriminalização: Implicações & Desafios
Repórter: Podemos de fato considerar ou contar efetivamente com a decisão que descriminaliza o usuário de drogas?
Dra Gabriella Arima & Dra Cecília Galício: Inicialmente, é importante esclarecer que, em que pese os esforços da Defensoria Pública Estadual de São Paulo e de todas as entidades da sociedade civil que participaram desse importante julgamento ao longo dos últimos 15 anos, a decisão da Suprema Corte Federal limitou-se apenas a descriminalização da maconha, deixando de fora todas as outras substâncias listadas na Portaria 344/1998 do Ministério da Saúde.
E apesar de não tratar mais como um crime, a Suprema Corte manteve o entendimento de que se trata de um ilícito administrativo. Isso significa que a maconha ainda é proibida, mas o usuário não deverá mais enfrentar a Justiça Criminal quando for flagrado portando ou cultivando a maconha para uso próprio. 
Porém, e aqui vemos a ineficácia ou confusão da decisão: os Ministros determinaram que se uma pessoa for surpreendida por policiais ainda terá sua substância apreendida e será encaminhada para a Delegacia, onde caberá a Autoridade Policial verificar se está dentro da quantidade-limite estabelecida na decisão (40 gramas ou 6 plantas) e se não existem outros indícios de comércio ilegal (balanças, ziplocks, anotações contábeis, identificação de compradores, etc). Após isso, caso considerada usuária, a pessoa ainda será intimada (chamada) a se apresentar a um Juiz para que ele estabeleça punições de advertência sobre os efeitos da maconha e/ou medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo. 
Além disso, é importante deixar claro que aqui estamos diante de uma decisão do STF, que faz parte do Poder Judiciário. Enquanto a matéria não for devidamente regulamentada, ou seja, enquanto a lei não for efetivamente alterada pelo Poder Legislativo, o julgado do Supremo Tribunal é “apenas” uma jurisprudência, um entendimento da Corte Superior, que deverá ser seguida pelos Tribunais brasileiros.
Na prática, nas ruas, acreditamos que ainda levará um tempo para vermos mudanças efetivas, mesmo porque, como bem reconhecido nos votos de alguns dos Ministros, a guerra às drogas trouxe prejuízos e preconceitos que se enraizaram no imaginário popular e, consequentemente, na mente daqueles que compõe a Força Policial, o Ministério Público e o Judiciário. Principalmente, com relação a abordagem policial, recomendamos que ainda seja mantido cuidado, já que uma mudança demandará muito mais do que apenas a decisão do STF descriminalizando a maconha.
Principais Argumentos Jurídicos 
Repórter: Afinal, quais são os principais argumentos jurídicos utilizados pelo STF para a descriminalização do porte de cannabis para uso pessoal?
Dra Gabriella Arima & Dra Cecília Galício: Apesar do resultado em si ter sido muito abaixo do esperado, se podemos tirar algo realmente bom do julgamento foi a qualidade dos debates realizados entre os Ministros. Acreditamos que o reconhecimento pela mais alta Corte do país de que a guerra às drogas é uma guerra falida, racista e que causa mais mal à sociedade do que bem, já é um grande avanço.
É o racismo estrutural que serve de base para a criminalização de drogas, como bem explorado pelo Min. Alexandre de Moraes em seu voto, que demonstrou muito bem com dados e embasamento como pessoas negras tem muito mais probabilidade de serem tratadas e enquadradas como traficantes do que pessoas brancas, que, geralmente, são consideradas usuárias, demonstrando muito bem como a guerra às drogas tem como finalidade o controle de corpos específicos. 
Outro argumento em comum utilizado por grande parte dos Ministros é a preocupação com os impactos negativos que a Lei de Drogas causou na saúde pública. Uma lei que foi criada com o intuito de garantir ao usuário acesso a serviços de saúde ao invés do cárcere, que teve como grande inovação a criação da diferenciação entre usuário e traficante de drogas, a partir do consenso que o uso de drogas é uma questão de saúde pública e não da Justiça Criminal, mas que, na realidade, levou milhares de pessoas à marginalização, sem acesso à saúde e muitas vezes injustamente criminalizadas, criando, assim, ciclos de violências e violações. 
E outro ponto que foi explorado, principalmente, nos votos do Min. Gilmar Mendes, Min. Luís Roberto Barroso e Rosa Weber, é a necessidade de que o Estado respeite e não interfira na vida privada das pessoas. Isto é, tais Ministros ressaltaram em seus votos que o uso de drogas, no caso, da maconha, não viola ou lesa direto alheio, ou seja, não afeta a vida de outras pessoas a não ser do usuário, e que, portanto, não cabe ao Estado dizer o que uma pessoa deve ou não fazer com o seu próprio corpo.

Fotos: Carla Bispo/Acervo Camara Clara © INFO HEMP Brasil

"A guerra às drogas trouxe prejuízos e preconceitos que se enraizaram no imaginário popular e, consequentemente, na mente daqueles que compõe a Força Policial, o Ministério Público e o Judiciário."
Descriminalização Vs Lei de Drogas 
Repórter: Como a descriminalização do porte de cannabis, baseada na decisão recente do STF, se relaciona com as leis atuais sobre o tráfico de drogas no Brasil?
Dra Gabriella Arima & Dra Cecília Galício: Bom, no Brasil nós temos apenas uma Lei que trata das drogas, que é a Lei n. 11.343/2006. E esse julgamento discutiu exatamente a constitucionalidade do artigo 28 dessa Lei, que criminalizava o ato de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trouxer consigo, semear, cultivar ou colher plantas que possam ser usadas para fabricação de drogas para uso próprio/pessoal. 
Assim, o STF além de entender que tal norma é inconstitucional, ou seja, que todas aquelas condutas não devem configurar crime quando se trata da maconha, corrigiu uma grande falha da Lei de 2006: a ausência de critérios objetivos de diferenciação entre as figuras do usuário e do traficante, retirando, assim, da arbitrariedade de agentes policiais, promotores e juízes o poder de definir quem é criminoso ou não.
Políticas Públicas  
Repórter: De que forma a descriminalização, se levada a cabo – com a seriedade requerida, pode vir a influenciar políticas públicas de saúde e eventuais programas de reabilitação para quem faz uso problemático de substâncias?
Dra Gabriella Arima & Dra Cecília Galício: Atualmente as políticas públicas devem ser orientadas pelas diretrizes do Departamento de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas (DESMAD), parte da Secretaria de Atenção Especializada do Ministério da Saúde (SAES). O DESMAD busca fortalecer a Rede de Atenção Psicossocial do SUS, defendendo os direitos humanos, a desinstitucionalização e a reabilitação psicossocial, em consonância com os princípios do SUS, leis federais, Reforma Psiquiátrica brasileira e Luta Antimanicomial. 
Entre as ações do DESMAD, destaca-se o incentivo e habilitação de serviços de saúde mental, como a ampliação de leitos em hospitais gerais, criação de novos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) e Unidades de Acolhimento (UA), ou seja, já existe uma política comprometida com a política de "Cuidar em Liberdade". 
O Brasil possui hoje uma das maiores redes de saúde mental do mundo, reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a partir da RAPS, que é um conjunto integrado e articulado de diferentes pontos de atenção para atender pessoas em sofrimento psíquico e com necessidades decorrentes do uso prejudicial de álcool e outras drogas, no âmbito do SUS, que já estabelece ações intersetoriais para garantir a integralidade do cuidado. 
Os atendimentos em saúde mental são realizados na Atenção Primária à Saúde (APS) e nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), onde o usuário recebe assistência multiprofissional e cuidado terapêutico conforme a situação de cada pessoa. 
As políticas públicas que venham a surgir, a partir do julgamento, que não atendam esses princípios, concebe o usuário de drogas como criminoso; também não se deve conceber o usuário como doente, patologizando seu consumo, e fundamenta-se no modelo médico e na centralidade da internação como tratamento, já que ambas as abordagens se fundamentam no princípio da punição, reforçando a lógica proibicionista.
Tratados, Convenções Internacionais & Controle de Drogas  
Repórter: Como a decisão do STF dialoga com tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário, especialmente em relação ao controle de drogas?
Dra Gabriella Arima & Dra Cecília Galício: Inicialmente poderíamos dizer que a decisão seria um reflexo da reclassificação da maconha, cuja Comissão de Drogas Narcóticas das Nações Unidas (CND) aprovou a reclassificação da maconha e da resina derivada da cannabis para um patamar que inclui substâncias consideradas menos perigosas segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), ou seja, a maconha deixou de ocupar a lista de substâncias consideradas "particularmente suscetíveis a abusos e à produção de efeitos danosos" e "sem capacidade de produzir vantagens terapêuticas", (a maconha estava posicionada ao lado de substâncias como a heroína), para a lista de substâncias como a morfina, que a organização também recomenda controle mas admite ter menos potencial danoso. 
Na prática, a decisão da CND não tem o poder de mudar as políticas adotadas por cada país sobre a maconha e seus derivados, porém a reclassificação, lança um outro olhar sobre a substância que passa a compor a lista de substâncias com potencial terapêutico, no entanto, não fica claro que os ministros tenham atentado para tal fenômeno. 
Por outro lado, o movimento da PEC 45 encaminha a discussão para o oposto deste reconhecimento internacional, ou seja, não é possível afirmar que as políticas internacionais sobre drogas tenham influenciado as políticas brasileiras, senão para reforçar a “Guerra às Drogas”, que sabemos, termina por consolidar uma guerra contra corpos. 

Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, 2011.  Foto: Carla Bispo/Acervo Camara Clara © INFO HEMP Brasil

Desafios Jurídicos & Administrativos  
Repórter: Quais são os desafios jurídicos e administrativos para a implementação eficaz da descriminalização do porte de cannabis no nível estadual e municipal?
Dra Gabriella Arima & Dra Cecília Galício: É importante aguardar a publicação do inteiro teor da decisão do julgamento, vez que às autoridades estaduais e municipais restará o cumprimento das regras federais a respeito do tema. 
O grande desafio é garantir que esses poderes não ultrapassem essas competências e não venham a legislar perigosamente a respeito do tema, como já vem sendo observado em alguns Estados e municípios, como a instituição de até 1 (um) salário-mínimo de multa para quem for flagrado fazendo o uso de substância (como aprovado recentemente no Estado de Santa Catarina). 
Como dito, as medidas meramente punitivas e incriminadoras não contribuem para resolver problemas decorrentes do uso de substâncias, e constituem ainda, medidas injustas e tratamentos desiguais.
Uso Medicinal   
Repórter: Como as empresas e indústrias relacionadas ao cultivo e venda de cannabis medicinal podem ser afetadas por essa decisão? Existe alguma previsão de regulamentação adicional necessária para harmonizar essas atividades com a nova decisão do STF?
Dra Gabriella Arima & Dra Cecília Galício: Não há qualquer vislumbre de que o julgamento venha a alterar a situação das empresas que comercializam ou das pessoas que fazem uso terapêutico de cannabis, que permanece restrito às resoluções da ANVISA, ou às excepcionalidades dos habeas corpus, individuais e coletivos, bem como não há previsão de que um debate afete o outro imediatamente, embora se espere que como consequência, tal questão urgente venha a ser tratada pelos poderes legislativos.
Descriminalização Vs Pec 45: Eficácia & Confusão    
Repórter: O que acontece agora com a PEC 45? O STF é o guardião da Constituição Federal, e, portanto, pode vir a ser desafiado pelo congresso? Quais são as possíveis confusões que podem acontecer neste caso?
Dra Gabriella Arima & Dra Cecília Galício: Como se vê, estamos diante de um conflito, de uma divergência de opiniões de como o tema deve ser tratado, se por um lado a decisão do STF reforça que não deve haver pena para os usuários de substâncias, a PEC vai no sentido contrário, ao sugerir uma criminalização constitucional. O que uma possível aprovação da PEC pode gerar é uma vigência curta dessa garantia conquistada pelos usuários, que, com certeza, será objeto de uma posterior discussão, por este mesmo STF. A queda de braço não acabou, e no meio dela, continuam a proliferar injustiças e gastos públicos desnecessários numa penalização que só reforça desigualdades. 
"A queda de braço não acabou, e no meio dela, continuam a proliferar injustiças e gastos públicos desnecessários numa penalização que só reforça desigualdades."
Cecília Galício
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Em síntese, os pontos cruciais sobre a descriminalização das drogas no Brasil, implicações jurídicas, impactos sociais e humanos dessa importante decisão destacados aqui e os que virá depois no sentido em que a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal pode representar um marco na proteção dos direitos humanos e na promoção da justiça social.
E portanto é preciso um olhar mais empático e informado sobre o tema, considerando os desafios e oportunidades que se apresentam com a possível aprovação da PEC 45/23, porque a descriminalização é um passo fundamental para reduzir a superlotação carcerária e combater a marginalização de comunidades vulneráveis não menos importante são as políticas públicas que precisa promover a saúde e a educação, ao invés da criminalização, como formas mais eficazes de lidar com o uso de entorpecentes.
O que virá depois?
A partir dessa discussão, é claro que o caminho para a descriminalização completa ainda requer um amplo debate e um consenso político e social. As decisões judiciais devem ser respeitadas e consideradas nas futuras ações legislativas. A sociedade brasileira está diante de um novo capítulo na política de drogas, e é crucial que todos estejam informados e engajados no processo.
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Advogada e ativista em direitos humanos e política de drogas, atualmente, é mestranda em Direito pela Syracuse University (NY/EUA). Sócia-fundadora do escritório Arima & Galício Advogadas Associadas. Ex-diretora e integrante da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas - Rede Reforma, conselheira do Conselho Estadual de Política sobre Drogas de São Paulo - CONED/SP, consultora na Comissão do Direito do Setor da Cannabis Medicinal da OAB/RJ e compõe o Grupo de Trabalho da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo formado para criar e aperfeiçoar a regulamentação da Lei de fornecimento gratuito de medicamentos a base de Cannabis pelo SUS.
Advogada, mestre em Direito Internacional Público pela Universidade de Lisboa. Professora de pós-graduação na Unyleya Educacional. Sócia-fundadora do escritório Arima & Galício Advogadas Associadas. Conselheira no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas. Coordenadora adjunta no Núcleo de Álcool, Outras Drogas e Saúde Mental da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP. Ex-diretora e integrante da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas - Rede Reforma.
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Produção: INFO HEMP Studio
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InfoHemp, Arima & Galício, Descriminalização, Direitos Humanos, Guerra às Drogas, Saúde, Advocacy, 2024
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